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FILIPE MAIA

Lavagem de dinheiro e a autonomia do delito antecedente

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O art. 2º, §1º, da Lei Federal n. 9.613/1998, relativo às “disposições processuais especiais”, dispõe que, nos casos do crime de lavagem de dinheiro, “a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente”.

O presente artigo busca analisar a constitucionalidade da expressão “extinta a punibilidade da infração penal antecedente”, prevista na última parte do sobredito dispositivo.

Referido parágrafo, ao tratar, supostamente, de questões processuais, permite que uma pessoa seja condenada pelo crime de lavagem de capitais, mesmo nos casos em que o hipotético crime antecedente tenha sido alcançado, por exemplo, pela prescrição.

A justificava, segundo entendimento majoritário da doutrina, reside no fato de que o injusto penal, o qual congloba o juízo de tipicidade e o de antijuricidade, perfectibilizaria o crime antecedente, pouco importando se houve ou não prescrição, visto que a punibilidade não estaria abarcada no conceito analítico de delito.

Ressalvada posição minoritária, capitaneada por Luiz Flávio Gomes, que defende uma teoria quadripartite de crime1, os elementos constitutivos do delito são, de acordo com o entendimento dominante, a tipicidade, a antijuridicidade e culpabilidade.

Nesse sentido, Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim defendem a autonomia do crime de lavagem de capitais em relação ao crime antecedente, de modo que, para os autores, basta apenas que se prove a existência de um dos delitos prévios, do qual procedem os bens, direitos ou valores, sem que seja necessário o processo, o julgamento ou a apuração de autoria.2

A questão radica, no entanto, na “prova da existência do delito prévio”, notadamente naqueles casos em que a punibilidade já restou fulminada.

A rigor, embora se trate disposições “processuais”, a discussão sobre a existência de um delito prévio vai muito além da punibilidade, ainda que se queira restringi-la ao injusto penal, restrito à tipicidade e antijuridicidade.

No plano da tipicidade, por exemplo, pode-se questionar as (i) tipicidades formal e material do fato, (ii) a existência da conduta e seus aspectos subjetivos, (iii) o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, bem ainda (iv) a imputação objetiva do fato.

Se, e somente se, superada a análise da tipicidade, dever-se-ão prescrutar as possíveis causas de exclusão de antijuridicidade, como é o caso, entre outros, do exercício regular do direito ou do estado de necessidade etc.

Importante salientar que o injusto penal somente existirá e dará origem a um “crime existente”, se essas categorias forem integralmente preenchidas, isto é, não se poderá firmar a existência do injusto penal, ainda que subtraída da análise a categoria da culpabilidade, se ausente qualquer requisito da tipicidade (conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade formal, material3), bem como se existente qualquer causa excludente da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal, exercício regular de direito ou ainda consentimento do ofendido – este, causa supralegal).

Se não houver o injusto penal, decerto desaparecerá o crime antecedente, o que implicará a atipicidade do crime acessório ou parasitário de lavagem de capitais.

O ponto nevrálgico da questão, todavia, reside nos casos em que a punibilidade está extinta, como ocorre, por exemplo, quando há prescrição. A prescrição, instituto de direito material, em que pese estar relacionada à punibilidade – e, portanto, fora do injusto penal – impede o conhecimento do mérito da causa.

Como se sabe, por mais que uma pessoa se julgue inocente, caso ocorra o fenômeno da prescrição no decorrer do processo, o Estado-juiz não se pronunciará sobre o mérito da causa, justamente porque o fenômeno constitui instituto de direito material e “qualifica-se como questão preliminar de mérito”.4 Essa situação, por via de consequência, retira do acusado todas as chances de defesa de mérito, as quais, se fossem apreciadas, poderiam conduzir à inexistência do crime.

A pensar de forma isolada, poder-se-ia dizer que, com a punibilidade extinta, mesmo sem juízo de mérito, o acusado não sairia do processo penal prejudicado, uma vez que a presunção, no processo penal brasileiro, é de inocência, e inocente sairá aquele contra quem a punibilidade, por exemplo, restou fulminada pelo transcurso do tempo.

Ao analisar o tema sob o específico enfoque da lavagem de capitais, no entanto, não parece haver muita dificuldade para se compreenderem os prejuízos que a extinção da punibilidade, por decorrência da prescrição, pode gerar para aquele que se vê processado com base em crime anterior prescrito.

Defender a redação do art. 2º, §1º, da Lei Federal n. 9.613/1998 é chancelar uma presunção de existência de crime, mesmo nos casos sobre os quais não houve efetivo enfrentamento do mérito.

Com a devida venia, se não foi possível amplo debate sobre os principais aspectos relacionados ao crime antecedente, a condenação pelo crime de lavagem de capitais, delito acessório, somente seria possível via a presunção de um crime anterior, cuja existência jamais poderá ser verdadeiramente reconhecida.

Aliás, a emprestar entendimento ainda mais amplo ao tema, André Luís Callegari e Raul Marques Linhares – com quem se concorda – defendem que:

“[…] a partir de uma interpretação conforme a Constituição (em respeito a um Direito Penal mínimo, e sobretudo ao princípio da legalidade), deve-se impedir a afirmação de ocorrência do delito de lavagem de dinheiro a partir de condutas cuja conexão com a comissão dos delitos anteriores seja remota, e cuja sanção penal em nenhuma ou em escassa medida possa contribuir à luta contra a delinquência organizada.”5

Para além da vertente defendida pelos autores, entende-se que nos casos em que não houve pronunciamento de mérito, por parte do Estado-juiz, acerca do delito antecedente ao de lavagem de capitais, este jamais poderá redundar em condenação, por ausência de tipicidade objetiva, uma vez que o caput do art. 1º da Lei Federal n. 9.613/1998 impõe que os bens, direitos ou valores provenham, direta ou indiretamente, de infração penal, elementar do tipo cuja existência, na linha do que se defendeu, jamais poderá ser firmada nas hipóteses de extinção da punibilidade e que, em decorrência do princípio constitucional do estado de inocência, de forma alguma poderá ser presumida.

Filipe Maia Broeto é advogado criminalista, mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Internacional de La Rioja, Espanha, mestre em Direito Penal Econômico e da Empresa pela Universidade Carlos III de Madri, Espanha, especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e autor de livros e artigos jurídicos, publicados no Brasil e no exterior.

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